Os Cavaleiros de Blågårds Plads

Lucas Jatobá
8 min readJul 16, 2021

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É junho de 2018, e o que se vê nessa tarde amena em Blågårds Plads é uma mistura de Mad Max, duas rodas e (contra)cultura punk. O lugar, que já foi considerado um dos mais perigosos de Copenhagen (seja lá o que isso signifique), está cheio de punks em toda sua diversidade de cortes e cores de cabelos, vestimentas e bicicletas?!

Quando Karl Von Drais, em 1817, montou a primeira bicicleta buscando substituir cavalos por um meio de transporte mais acessível, unindo duas rodas a partir de um “quadro” de madeira, com certeza não imaginaria que 200 anos depois um grupo de punks nesse canto do norte europeu estaria realizando dérbis com sua invenção.

Nesse ponto do mundo o sonho de tê-las como um meio de transporte popular certamente se realizou, eu mesmo não teria chegado aqui se não fosse a velha bicicleta rosa que me foi emprestada por velhos amigos, mas o que se vê é algo além, é como se tivesse sido transportado para o século XIX, onde as magrelinhas podiam ter dois metros de altura, rodas de diferentes tamanhos, à exceção de que aqui elas são construídas para destruir umas as outras por velhos e jovens punks que querem se divertir em um festival de verão.

Cada bicicleta aqui é peça única de existência curta, até o fim do dia a maioria (ou nenhuma) delas estará inteira, em um espetáculo completo que une criação e destruição. Uma tradição anual do K-Town Hardcore Fest, as Bike Wars (Guerras de Bicicleta) consistem em um dérbi entre as mais estranhas bicicletas e seus “cavaleiros”, que lutam até a derrubada de seus oponentes ou a destruição de suas magrelas.

Vim parar aqui pela indicação do velho amigo que não deu muitos detalhes do que encontraria: “vá, você vai ver do que se trata”. O ambiente contrasta com seus ocupantes: ao norte da praça o que se vê é a grande igreja, ao centro, rodeado por 22 estátuas de granito representando trabalhadores e crianças, o espaço que serve no verão como quadra de futebol e no inverno como rinque de patinação está cercado por punks, em uma das laterais um palco onde bandas de hardcore são apresentadas juntas aos “gladiadores” que enfim irão transformar o espaço em uma grande arena de destruição.

As regras são simples, entre um show e outro cada “cavaleiro” tenta desmontar o oponente de suas carruagens ou torná-las inúteis. Na primeira categoria do dia cada duelista se enfrenta em bicicletas normais, provavelmente agradando aqueles que não tiveram tempo ou condições de construir um monstro de metal. As magrelas de dois metros vêm em seguida, cada oponente precisa desmontar seu adversário três vezes para obter a vitória. A coisa toda segue como um velho duelo medieval entre cavaleiros, mas sem cavalos (agradando o velho Karl), aquela coisa da honra, sangue e também lanças pontudas, essa última proibida justamente em razão da que a precede.

O ápice da destruição, porém, está sabiamente guardado para o fim. Obrigadas a ter no mínimo três rodas, as Monster Bikes tem como único e principal objetivo destruir suas adversárias e já não possuem mais um único piloto, algumas são como carros alegóricos onde cada tripulante tem a obrigação de ajudar a destruir não só as carruagens adversárias, mas as suas próprias. Em todas as etapas e categorias do dérbi, a platéia em polvorosa acompanha e comemora, ou sente, cada pancada como se fosse em si, aguardando ansiosamente o apoteótico fim onde terá sua vez.

A invasão dos espectadores marca o final do dérbi, quando já não há mais bike monstro que se sustente sobre suas três ou mais rodas, justa participação daqueles que fazem o espetáculo acontecer. Um a um contribuem para a pilha de aros empenados, fogo, fumaça e aço retorcido que afinal sempre foi o objetivo de todo o evento e que, depois dessa experiência, julgo que deveria ser a finalidade de qualquer outro.

Na cidade mais amigável a ciclistas do mundo, não só os cavalos foram substituídos como máquinas de transporte e guerra, apenas 9% de sua população desloca-se de carro em seu dia a dia e há mais bicicletas do que habitantes na capital dinamarquesa. A destruição dos punks de Blågårds Plads, no fim das contas, nada mais é do que uma grande celebração da cultura das magrelas. Se estivesse por aqui hoje, o velho Karl estaria não mais espantado do que orgulhoso.

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